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Uma Boa História Jamais é Cruel

Posted on Monday, February 18, 2013

Por Pablo Miyazawa


Li A Visita Cruel do Tempo, da escritora norte-americana Jennifer Egan, com dois anos de atraso. É uma vergonha. Talvez eu devesse ter me atentado antes, mas a leitura é um costume que perdi e custei a recuperar. Deve haver uma provável carga de culpa a cada novo livro que abro – pretendo compensar os anos universitários, que mal me forçaram a ler mais de um livro por ano letivo? Provável. Ainda dá para tirar o atraso? Por favor.

Se bem que meu interesse em ficção é curto, apesar do meu gosto por boas histórias. Prefiro um filme com enredo original a um documentário ou adaptação mastigada de obra consagrada. Mas prefiro ver os filmes de Star Wars a me atrever a ler as novelizações. Fui criado no limiar da era visual, ainda com contato constante com livros (graças ao meu pai, editor de arte em uma publisher de infanto-juvenis), mas aprendendo aos poucos que ver era mais “fácil” do que crer imaginando. Os videogames não ajudaram muito a mudar este quadro – devem ter piorado. E foi assim com toda geração surgida após a minha, de forma mais e mais acentuada. Para que imaginar, se podíamos assistir E interagir?

Voltar a ler após muitos anos tem suas vantagens. É possível zerar o status quo e definir um novo gênero favorito, o que no meu caso significou abandonar os relatos de mistério, aventura e romance, para me dedicar às experiências dos outros. Será que minha rotina de jornalista contribui com a ânsia de me apropriar e entender os fatos reais? Muito provavelmente. Hoje, prefiro memórias, biografias, relatos jornalísticos, livros de teorias e, por que não admitir?, autoajuda, que é criticável mas também é gente.Toda autobiografia ou livro de memórias, ensaios ou ideias (excetuando a não-ficção documentarial) é, de certa forma, um relato de autoajuda disfarçado. Funciona assim: “Compartilho aqui minhas ideias, opiniões e experiências, dando a entender que são dignas de publicação, e, portanto, possuem valor de conselho”. Li mais biografias e autobiografias do que consigo me lembrar – deve ser o meu gênero atual favorito, se eu tivesse de admitir. Procuro saber o que pensam, fazem e fizeram as pessoas que de certa forma admiro (ou desprezo?). Não sei o que obtenho nessa troca, além de assunto para a mesa do almoço, mas provavelmente alguma coisa absorvo. Nem que seja uma vaga lembrança.

A Visita Cruel do Tempo (A Visit from the Goon Squad) é excelente por seu caráter inspirador. Ele motiva a um ponto tal que é possível sentir (ou imaginar) as motivações por trás da mente criativa de Egan. Como ela bolou tal trama, como envolveu os personagens, como colocou no papel? O que veio primeiro, o conceito ou as histórias? Me peguei pensando nisso ao volante, antes de dormir, escovando os dentes. Imaginei a dificuldade envolta no processo, até a hora que conclui que deve ter sido fácil demais para uma mulher como ela, que escreve feito um homem – sem discriminações aqui; defino no sentido truculento, arrogante e pouco delicado de ser, típico do macho estereotipado e tradicional. Nada reclamo das narrativas criadas pela autora: envolventes, com as palavras certas a cada personagem, com o ritmo adequado a cada época viajada, sem percalços ou estranhamentos. As surpresas vão surgindo a cada linha – repentinamente, descobre-se que aquele personagem com quem você passou 20 páginas envolvido irá morrer de maneira trágica uns 20 anos adiante. Ou que a pessoa citada de relance na terceira página se tornará o protagonista umas 100 páginas depois (e coadjuvante onisciente lá pelo final do livro). Egan teceu uma teia difícil de romper e que nos agarra tão rapidamente, ainda que de modo sutil. Ela nos deixa curiosos, não apenas pelo que vai acontecer, mas também pela maneira como ela irá nos apresentar o futuro. Ou o passado, em certos casos.

Li por aí que uma série de TV está sendo produzida, baseada no enredo de A Visita Cruel do Tempo. Pelo que entendi, está parado, ou mantido em muito segredo. Fiquei decepcionado com a notícia, porque tive a mesma ideia. Não que fosse assim tão óbvia: o livro nasceu pronto para ser assistido. A narrativa caótica em sua perfeição é perfeita para as mídias visuais (as quais, alias, inspiraram muito a autora, nas palavras dela mesma). Um filme também daria certo, mas exigiria um diretor tão ousado e criativo quanto Jennifer Egan. Talvez o resultado seja autoral demais, descaracterizando a obra original, como tanto acontece no cinema. A televisão, se feita da maneira correta, parece o apêndice perfeito, o complemento obrigatório.

E os videogames? Talvez pudessem abraçar causas semelhantes, ou pelo menos inspirar-se pela multiplicidade temporal e de protagonistas de A Visita Cruel do Tempo. O paradigma dos jogos eletrônicos não está localizado apenas na área visual ou interativa. Ainda há muito para ser feito nas histórias contadas pelos jogos. Jamais houve tamanha preocupação com isso, por simples preconceito, possivelmente. As empresas devem achar que o jogador típico não está preocupado com detalhes que atrapalhem a experiência manual-sensorial. É possível que muitos não estejam mesmo. Mas quantos outros não estariam interessados em imergir em boas histórias nos games? Mass Effect 3 e The Walking Dead são exemplos de 2012 para este bem-vindo novo apontamento do entretenimento digital: enredos interessantes, complexos e de bom gosto, que se utilizam de maneira inventiva da natureza interativa dos videogames. Boas histórias, contadas e experimentadas de maneiras novas, emocionalmente falando. Gamers sensíveis também pensam, e choram.

HBO, continuo aguardando aquela série prometida. Empresas de games, continuem a me surpreender. E Jennifer Egan, muito prazer, antes tarde do que nunca. Te lerei em breve novamente.

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