Por Pablo Miyazawa
Você deve ter lido relatos bem parecidos já, mas enfim.
Minha noite de ontem foi assim:
1. Segui com os colegas de trabalho para o Largo da Batata -
felizmente, uma mera pernada de 10 minutos até lá. Policiais podiam ser vistos,
mas em estado de alerta amistoso, encostados nas paredes. Pareciam estar só
cumprindo tabela ali. A multidão, numerosa, ansiosa, animada e festiva, em estado de concentração puro, esperava por uma
ordem que não vinha. Ela veio na forma de caminhada: todos andando em frente,
que atrás vem gente.
2. A
sensação é de que todo mundo era conhecido ou já tinha se visto por aí.
Acabamos marchando ao lado da "ala dos famosos" - e eles eram vários.
Caminhei uns metros ao lado do chef Alex Atala, do ator Felipe Folgosi e do
Milhem Cortaz, que fez o Capitão Fabio em Tropa de Elite (que vestia uma
camiseta amarela pedindo o fim da PEC 37 – não, a vida não imita a arte).
Também vi muitos integrantes de jovens bandas de rock na mesma multidão. E
muitas senhoras. Muitos estudantes. Alguns com as caras pintadas. Muitos com
cartazes escritos à mão (outros mais elaborados, patrocinados por algum
coletivo cultural). Apitos, chocalhos e não, nenhuma caxirola, felizmente.
3. Passamos em frente à estação Faria Lima e a massa começou
a se mover junta, passinhos curtos, sem pisar nos pés do companheiro da frente.
De longe, deu para ver a Teodoro Sampaio tomada, mas não foi possível distinguir
se as pessoas subiam ou desciam a rua. Os slogans gritados pareciam criados na
hora. Eram cantados por menos de um minuto, e logo substituídos por outro. Ema
ema ema, nosso forte é a rima - todos poderiam estar estampando camisetas. Eram
menos reclamações políticas, e mais palavras de ordem e de auto-afirmação
(minha favorita: "o povo, unido, é gente pra caralho" – nesse eu ri).
4. Só vi um princípio de tumulto, diante do prédio do UOL:
uma correria de meia dúzia atrás de um só. Levei segundos para notar que eram
gritos de "pega ladrão". Alguém se aproveitou da movimentação para
furtar, e ninguém ali quis deixar barato. “Não na nossa manifestação pacífica!”
Correram atrás, e devem ter pego o cara. E se o pegaram, na certa fizeram um
estrago nele (não vi). Mas foi uma das únicas movimentações estranhas que percebi.
A outra foi na Brigadeiro Luis Antônio, quando alguém estourava bombas por
esporte em uma das esquinas. Dessa vez, um grupo de 20 correu atrás do tal
pirotecnico, que deu no pinote. A multidão, por sua vez, continuava seguindo, e
os gritos de "sem violência", ou "continuem, continuem" se
faziam ouvir.
5. As janelas acesas dos prédios da Faria Lima pareciam
aprovar o evento - com toalhas brancas, papéis picados, sinais de positivo ou
aplausos. A massa respondia às manifestações de apoio com mais aplausos e
gritos de "vem pra rua vem, contra o aumen-tô!". Andamos mais devagar
próximo ao shopping Iguatemi, onde um grupo de mães (que assim se definiam)
levantou placas de motivação e recebeu palmas e flashes. Mais adiante, diante
de um novo edifício espelhado (do Itaú, me disseram), as palmas eram concedidas
a nós mesmos: o reflexo do formigueiro de gente refletido nos vidros era uma
imagem impressionante que na certa fez cada um que ali estava se sentir mais
“muitos” e menos “um”. Foi quando me dei conta de onde eu estava e o que
acontecia. Até então, me deixei levar pela maré, zonzo e desorientado.
Emocionado também.
6. É preciso ainda dizer o quão pacífico foi tudo? Devo dizer que me senti mais
seguro do que em uma saída de show de rock ou do que na entrada de uma partida
de futebol. Muito mais. É como se para assistir a um ex-Beatle ao vivo as
pessoas precisassem exprimir mais raiva. Todo mundo ali até parecia torcer para
um mesmo time, mas não torciam – nem todos estavam caminhando pelas mesmas
causas. Cada um parecia ter a sua. Mas ao ar livre, dominando a avenida
normalmente opressora, todos pareciam ter o mesmo objetivo: seguir em frente,
conduzir quem estava atrás, ou se deixar levar por que andava adiante. Só vi
sorrisos e ouvi risadas. Sem cinismo ou demagogia aparentes. Alguns
manifestantes escalaram uma estátua e gentilmente colocaram uma máscara
protetora no rosto do homem de pedra. Vandalismo? Só se pisar na grama for
considerado isso. Vi sim, gente caindo ou tropeçando em buracos de obras e
tapumes no asfalto. Mesmo diante de vitrines de grifes caras (protegidas por
seguranças), a palavra de ordem era o respeito. Quem marchava não apenas
protestava, mas aproveitava para curtir a própria cidade – algo impossível de
se fazer no dia a dia saturado de máquinas, pneus, fumaça e correria. As
pessoas apenas andavam, querendo chegar lá.
7. Na esquina da Faria Lima com a Juscelino Kubitschek, o gargalo da indecisão:
seguir para a direita ou a esquerda? “Para a direita não vou nem fudendo!”, riu
falando sério o militante de esquerda. Para “lá” significava encarar a Marginal
Pinheiros, rumo à ponte estaiada. Para a esquerda, o destino era a avenida
Paulista. Os minutos de dúvida foram temperados pelas informações que chegavam
aos gritos (“100 mil pessoas no Rio de Janeiro, porra!!”, “Invadiram o Planalto!!”,
“Já tem 70 mil na ponte!!”), daqueles que portavam radinhos de pilha ou
contavam com um 3G em funcionamento (ah, a tecnologia). A voz da maioria me
venceu: “Vamos prá Paulis-tá!”, uns dez comandaram. Fomos. Na JK, a pista
contrária era feita de carros com motores desligados e motoristas impacientes,
mas coniventes. Alguns permaneciam nos veículos, outros só olhavam a banda
passar. “Ah há, uh hu, a cidade é nossa!”, o rapaz de 1,90m na minha frente cantou,
e dessa vez me senti obrigado a gritar junto. Não era uma maratona 15k que nos
fazia percorrer os asfaltos das avenidas mais movimentadas e conquistar as veias da capital. Não haveria medalha de consolação no final do percurso. Mas ninguém parecia cansado ou menos motivado por isso.
8. Subindo a infinita Brigadeiro Luis Antônio, escurecida pela pouca
iluminação, o grupo parecia disperso, mas era impressão. Só no final da subida
de três quilômetros, olhando para trás, que nos demos conta da massa disforme
que nos seguia. A emoção era evidente em quem se dava conta do tamanho daquilo:
os telefones com câmera registravam a fila infinita, que se tornava um borrão lá
no distante pé da avenida. Carros buzinavam em apoio. Algumas
mulheres ao volante seguravam flores com o braço para fora da janela – uma
maneira de dizer “estou com vocês, apesar de não seguir junto”. Dentro de ônibus
vazios, os motoristas e cobradores eram incógnitas: alguns apoiavam com sorrisos
e gestos; outros, pareciam imaginar a que horas poderiam enfim voltar para
casa. Os manifestantes perguntavam, em coro alegre: “ô motorista, ô cobradô,
diz aí se seu salário melhorô?”. Aquelas expressões indecifráveis meio que
respondiam à questão – não, estava tudo na mesma. Mas será que irá melhorar?
9. Enfim, a Paulista. Parecia fim de feira, fora a ausência de restos e lixo no
chão. Pessoas iam e vinham sem rumo definido, sem objetivo aparente, denotando apenas
o prazer de estar lá, dominando as pistas que não nos pertencem quase nunca.
Encontrei amigos, que procuravam por outros amigos na multidão. Todos sorriam e
se abraçavam. Parecia clima de reveillon, sem a cidra ruim e sem parentes
inconvenientes. Enfim, vi a polícia novamente. Pareciam tão tranquilos e
passivos quanto no dia da Virada Cultural. Desorganizados em grupos, pareciam
nem prestar atenção a quem por ali passava. A frente do Masp estava mais tomado
do que o restante da via – havia espaço para a dispersão no vão livre. Quem
tinha uma placa, levantava a sua para a posteridade. Quem não sabia para onde
ir, parava e olhava os outros sendo os outros. A Paulista era nossa – não sabíamos
bem o que fazer com ela, mas era nossa. E quem quis, aproveitou e se sentou no
chão, bloqueando o cruzamento com a Rua Augusta. Tive vontade de me sentar também,
mas continuei a andar.
10. Peguei o metrô da linha 4 na Consolação, não antes de
ver a via ser bloqueada e ouvir mais um estouro de bomba, seguido de vaias (o
procedimento se repetiu diversas vezes nas horas anteriores – toda explosão
ganhava sua reclamação). Descendo os degraus infinitos da estação Paulista, era
possível escutar a cantoria nos andares superiores. A festa continuava no
subterrâneo, pacífica como começara na Batata. Antes de embarcar, enxerguei de
longe uma adolescente posando para uma foto na frente da parede amarela. Nas mãos,
um cartaz cuidadosamente desenhado - “Somos os filhos da revolução”, o definitivo
slogan de refrigerante de Renato Russo. Na cara dela, o sorriso de orgulho de alguém
que finalmente encontrou uma causa para chamar de sua.