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Será o Fim da Memória?

Posted on Friday, February 22, 2013

Por Pablo Miyazawa


A importância das coisas como elas são hoje.

Eu divago a respeito. E para que servirá o que temos e fazemos agora? Como isso será visto pela humanidade daqui 50, 100, 200 anos?

Estudar o passado está na moda mais do que nunca esteve na história da humanidade. Jamais tivemos tantas chances e possibilidades de guardar o que já aconteceu, redistribuir e conservar para sempre. Há até poucos anos, tudo estava perdido, ou se deteriorando. Hoje, as informações não apenas são recuperadas como são guardadas e espalhadas no exato momento em que passam a existir. Em se tratando do meio digital, jamais haverá volta – saberemos de tudo que aqui acontece, para sempre, é só saber procurar. E já está assim faz tempo. A internet não perdoa nada, não esquece nunca. A não ser em caso de apocalipse. Aí é provável que o fio será puxado da tomada e voltaremos à estaca zero. Mas do jeito que estão os cérebros das novas gerações, irá demorar muito pouco para alcançarmos o estado atual novamente. Não tem mais volta.


De certa forma, nunca mais teremos problemas de memória. O risco de encontrarmos gravações perdidas, fotos inéditas, tesouros desconhecidos, filmes inacabados… irá diminuir, pois quase tudo poderá ser reencontrado ou desbravado com a tecnologia sempre em crescente evolução. E tudo o que está sendo produzido agora no meio digital jamais irá desaparecer. Em breve, saberemos de tudo – o que importa e o que não importa – e haverá muito pouco ainda a ser descoberto. Teremos posse de toda memória da humanidade e nunca mais precisaremos nos esforçar para lembrar de nada. A informação será de todos, e de ninguém. O RIOT de hoje é só o começo – e será o fim do privado. 

Esta alternativa distópica é especialmente perigosa, de tão provável que é. Uma teoria parece possível: a população que não precisa se esforçar para recordar de qualquer coisa corre o risco de perder a capacidade da memória. Pouco estimulada, essa habilidade deixaria de ter função cerebral importante ao longo das gerações. Gerações de desmemoriados viriam, e que recorreriam à rede coletiva para recordar os fatos antigos e os muito recentes. As relações familiares também poderiam se comprometer. Será mais fácil de esquecer a importância de certo parente ou amigo de infância. As redes sociais pessoais ajudariam na conservação de lembranças boas dos tempos de criança – e somente as boas, quase sem traumas. (Pensando bem, já não é o que acontece hoje em dia?)

A tecnologia nos tornará preguiçosos, esquecidos e desconectados com nossas próprias histórias de vida. No futuro, olharemos para esta época (a atual) como a da última geração que ainda se conecta ao passado de maneira somente orgânica (entre aspas). Sobrevive, mas está em processo de extinção. Não me digam que não é bem assim, ou jornais e revistas de papel não estariam em situações cada vez piores, só sobrevivendo porque são sustentados por publicidade, projetos paralelos e versões online. CDs, discos e DVDs caem mais e mais em desuso (o fetiche pelo vinil e edições especiais de CDs, blurays e afins é apenas um ponto fora do curva que não corresponde à atual direção do gosto da jovem maioria – pergunte a um adolescente comum se ele coleciona essas coisas). As pessoas novas que surgem todo dia estão sutilmente se desapegando do culto ao antigo, e da posse, de modo geral. É mais barato, mais rápido e sustentável, não gasta material e não mexe com o passado desnecessário. A vida digital cabe em uma caixinha.

No tempo presente, são raras as exceções, mas alguns hábitos tradicionais persistem. Apesar do fim da pureza de outros tempos, o futebol resiste aos novos esportes – MMA, corridas de velocidade, jogos de azar – no posto de modalidade mais adorada do mundo. Já os livros de papel ainda vendem grandes números. Sobre qualidade da literatura, é outra conversa: antigamente, livros ruins simplesmente não ganhavam divulgação bastante para sobreviver ao gosto do público. Acabavam esquecidos, na vala dos medíocres. Guardamos de antes os clássicos, que não eram maioria, mas minoria absoluta (ou será que consideramos clássicos simplesmente aqueles que sobreviveram ao tempo? É para pensar). Temos a falsa impressão de que vivemos em um período de mediocridade e baixíssima qualidade literária. Mas isso é apenas porque sabemos de tudo o que acontece – e principalmente daquilo que não queremos ou precisamos saber. O mundo lê hoje 50 Tons de Cinza pela qualidade do texto ou pela curiosidade gerada por todos aqueles livros sendo lidos no metrô?

Ainda falando sobre qualidade, o mesmo vale para a música (não necessariamente o rock com guitarras – este vale outro argumento), para o cinema, para a arte moderna, para a música clássica e para a expressão artística de um modo geral. Nunca paramos de evoluir culturalmente, mas hoje percebemos melhor toda a ruindade que cerca uma obra de ótima qualidade. Com certeza nosso discernimento se encontra enegrecido pela excessiva quantidade do que é produzido hoje. Aos olhos do observador, tudo é uma merda, com pouquíssimas exceções. Poucos se salvam. Como pensar diferente, afinal?

E o que o esquecimento da memória tem a ver com a mediocridade cultural? Provavelmente, tudo.

***

Eu creio na ideia do ter, do adquirir, do acumular. Gostaria de ser mais desapegado, mas resisto de propósito. Colecionar memórias dos tempos da escola na cabeça é melhor do que pertencer à comunidade dos ex-alunos daquela escola no Facebook – certamente, as sensações melhores estão na cabeça. Lembrar de uma data importante só para se exibir na roda de amigos não é algo a ser desprezado – deveria ser estimulado. Constantemente sou alertado de minha “memória privilegiada” (“o cara lembra de tudo, é o homem-data”), como se fosse um defeito, uma aberração. Por que as pessoas se lembram de tão pouco e esquecem das coisas com tanta facilidade, em uma progressão geométrica que se inicia na casa dos 20 e jamais termina? Não somos mais estimulados a lembrar de nada, já que alguém ou alguma coisa fazem isso por você. Fotos, vídeos, cartas e e-mails ajudam bastante, mas existe coisa comparável a reencontrar ex-colegas de trabalho para beber e relembrar as histórias do tempo do escritório? (O álcool também ajuda a estimular a memória, inclusive.)

Quando foi a última vez em que você se lembrou de uma informação inútil? Seu número na chamada da oitava série, o nome do zelador do prédio da infância, o telefone fixo da casa daquele amigo que nem mora mais no Brasil. Ou bobagens mais gerais, não menos inúteis, como a escalação da seleção de 1982, os nomes de todos os personagens da Caverna do Dragão, o elenco principal da novela Vale Tudo, a ordem das músicas do Nevermind. Tudo isso sem apelar ou usar o Google. Quem ainda consegue? Você consegue?

Deveríamos tentar mais.

Discussion

  1. O Umair Haque, que anda surtando uma vez por dia com isso tudo que está aí, falou coisa parecida sobre a mediocridade cultural:

    @umairh
    Maybe we're in a cultural depression, a place of mediocrity. RT @DylanPaulMathis: like the economy, music has been in recession.

    https://twitter.com/umairh/status/298132225055141888

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  2. Obrigado, Marcel. Era o que eu precisava para terminar o texto!

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  3. Muito obrigado por amenizar meu sentimento de "sou estranho" por ter uma memória relativamente boa. Digo relativamente, pois também observo a desmemorização daqueles com quem convivo, e nesse contexto não acho a minha memória boa, acho a dos outros ruins.

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  4. Eu sempre me considerei uma enciclopédia em cinema, bandas, música, literatura, enfim de coisas que sempre me interessaram. De uns tempos para cá, se a memória falha, e tem falhado, eu tenho a sensação de que nada está perdido pois tenho o google para me socorrer. Nesse sentido, devo dizer que os mecanismos de busca nos deixam mais preguiçosos pois existe a certeza que tudo está lá. É só saber buscar. E isso até que é verdade: já encontrei referências a fatos da década de 70 que estive presente e vi acontecer mas não tinha certeza se realmente aconteceu daquele jeito que eu me lembrava e a pesquisa acabou me confirmando e clareando a memória. Então, uma vida sem google hoje seria praticamente impossível, mas há 10 anos atrás devemos lembrar que o google não tinha essa importância que tem hoje e "éramos felizes" do mesmo jeito.

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  5. A primeira vez que eu pensei nesse assunto foi quando reparei que, por causa da agenda de todo celular, não lembro mais nenhum número de telefone, às vezes nem o meu próprio.

    De vez em quando eu quero lembrar o nome de alguma coisa e resisto ao impulso de ir direto ao Google. Tipo agora, com uma série do SBT que assistia quando moleque. A sensação é sempre a de estar exercitando um músculo atrofiado.

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  6. O cérebro - esse nosso músculo tão atrofiado e cansado. :)

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  7. Ontem, no meio de uma apresentação muito chata, eu estava divagando e acabei pensando... o que aconteceria se houvesse um apocalipse digital? De repente todas as informações salvas em bancos de dados do mundo desaparecem e ninguém consegue recuperar. Será que isso criaria um buraco na nossa história? Será que as pessoas parariam de confiar na tecnologia?

    Por mais que eu goste da internet e de todas as possibilidades que ela me dá, às vezes fico me perguntando como seria se tivesse crescido numa época em que ela não era tão acessível...

    Mas não tenho do que reclamar quanto à minha memória. Nunca esqueço datas (por mais que gostaria de esquecer algumas...), se olho pra data e penso "ah, hoje é dia tal e estou fazendo isso", vou lembrar depois. Por exemplo, assisti Scott Pilgrim no cinema no dia 11/11/10. Hoje é dia 26 e começa o semestre na Unicamp; o dia 26/02/2004 foi o meu primeiro dia de aula no colegial e colégio técnico.

    E quando saía com amigos de forum, costumava escrever sobre os melhores momentos do encontro, algumas tiradas engraçadas. E as pessoas se surprendiam por eu ser capaz de citar uma conversa palavra por palavra. Talvez o próprio ato de escrever seja um estímulo para a memória. Se eu não lembrar das coisas, vou escrever sobre o quê?


    (e eu escrevo muito, como dá pra perceber)

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    1. Continue a escrever, Patty. Faz bem para o mundo.

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